segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Um Deus que sorri- Martha Medeiros




Eu acredito em Deus.
Mas não sei se o Deus em que eu acredito
é o mesmo Deus em que acredita
o balconista, a professora, o porteiro.
O Deus em que acredito não foi globalizado.
O Deus com quem converso não é uma pessoa,
não é pai de ninguém.
É uma idéia, uma energia, uma eminência.
Não tem rosto, portanto não tem barba.
Não caminha, portanto não carrega um cajado.
Não está cansado, portanto não tem trono.
O Deus que me acompanha não é bíblico.
Jamais se deixaria resumir por dez mandamentos,
algumas parábolas e um pensamento que não se renova.
O meu Deus é tão superior quanto o Deus dos outros,
mas sua superioridade está na compreensão das diferenças,
na aceitação das fraquezas e no estímulo à felicidade.
O Deus em que acredito me ensina a guerrear conforme as armas que tenho
e detecta em mim a honestidade dos atos.
Não distribui culpas a granel: as minhas são umas,
as do vizinho são outras, e nossa penitência é a reflexão.
Ave Maria, Pai Nosso, isso qualquer um decora sem saber o que está dizendo.
Para o Deus em que acredito só vale o que se está sentindo.
O Deus em que acredito não condena o prazer.
Se ele não tem controle sobre enchentes, guerrilhas e violência,
se não tem controle sobre traficantes, corruptos e vigaristas,
se não tem controle sobre a miséria, o câncer e as mágoas,
então que Deus seria ele se ainda por cima condenasse o que nos resta:
o lúdico, o sensorial, a libido que nasce com toda criança e se desenvolve livre,
se assim o permitirem? O Deus em que acredito não é tão bonzinho: me castiga e me deixa uns tempos sozinha.
Não me abandona, mas me exige mais do que uma visita à igreja,
uma flexão de joelhos e uma doação aos pobres:
cobra caro pelos meus erros e não aceita promessas performáticas,
como carregar uma cruz gigante nos ombros.
A cruz pesa onde tem que pesar: dentro.
É onde tudo acontece e tudo se resolve.
Este é o Deus que me acompanha.
Um Deus simples.
Deus que é Deus não precisa ser difícil e distante, sabe-tudo e vê-tudo.
Meu Deus é discreto e otimista.
Não se esconde, ao contrário, aparece principalmente nas horas boas para incentivar,
para me fazer sentir o quanto vale um pequeno momento grandioso:
um abraço numa amiga, uma música na hora certa, um silêncio.
É onipresente, mas não onipotente.
Meu Deus é humilde.
Quem não te sorri não é cúmplice
.

Amigo de si mesmo



Em seu recém-lançado livro Quem Pensas Tu que Eu Sou?, o psicanalista
Abrão Slavutsky reflete sobre a necessidade de conquistar o
reconhecimento alheio para que possamos desenvolver nossa autoestima.
Mas como sermos percebidos generosamente pelo olhar dos outros? Os
ensaios que compõem o livro percorrem vários caminhos para encontrar
essa resposta, em capítulos com títulos instigantes como Se o Cigarro
de García Márquez Falasse, Somos Todos Estranhos ou A Crueldade é
Humana. Mas já no prólogo o autor oferece a primeira pílula de
sabedoria. Ele reproduz uma questão levantada e respondida pelo
filósofo Sêneca: "Perguntas-me qual foi meu maior progresso? Comecei a
ser amigo de mim mesmo".

Como sempre, nosso bem-estar emocional é alcançado com soluções
simples, mas poucos levam isso em conta, já que a simplicidade nunca
teve muito cartaz entre os que apreciam uma complicaçãozinha.
Acreditando que a vida é mais rica no conflito, acabam dispensando
esse pó de pirilimpimpim.

Para ser amigo de si mesmo é preciso estar atento a algumas condições
do espírito. A primeira aliada da camaradagem é a humildade. Jamais
seremos amigos de nós mesmos se continuarmos a interpretar o papel de
Hércules ou de qualquer super-herói invencível. Encare-se no espelho e
pergunte: quem eu penso que sou? E chore, porque você é fraco, erra,
se engana, explode, faz bobagem. E aí enxugue as lágrimas e perdoe-se,
que é o que bons amigos fazem: perdoam.

Ser amigo de si mesmo passa também pelo bom humor. Como ainda há quem
não entenda que sem humor não existe chance de sobrevivência? Já
martelei muito nesse assunto, então vou usar as palavras de Abrão
Slavutsky: "Para atingir a verdade, é preciso superar a seriedade da
certeza". É uma frase genial. O bem-humorado respeita as certezas, mas
as transcende. Só assim o sujeito passa a se divertir com o
imponderável da vida e a tolerar suas dificuldades.

Amigar-se consigo também passa pelo que muitos chamam de egoísmo, mas
será? Se você faz algo de bom para si próprio estará automaticamente
fazendo mal para os outros? Ora. Faça o bem para si e acredite:
ninguém vai se chatear com isso. Negue-se a participar de coisas em
que não acredita ou que simplesmente o aborrecem. Presenteie-se com
boa música, bons livros e boas conversas. Não troque sua paz por
encenação. Não faça nada que o desagrade só para agradar aos outros.
Mas seja gentil e educado, isso reforça laços, está incluído no
projeto "ser amigo de si mesmo".

Por fim, pare de pensar. É o melhor conselho que um amigo pode dar a
outro: pare de fazer fantasias, sentir-se perseguido, neurotizar
relações, comprar briga por besteira, maximizar pequenas chatices,
estender discussões, buscar no passado as justificativas para ser do
jeito que é, fazendo a linha "sou rebelde porque o mundo quis assim".
Sem essa. O mundo nem estava prestando atenção em você, acorde.
Salve-se dos seus traumas de infância. Quem não consegue sozinho, deve
acudir-se com um terapeuta. Só não pode esquecer: sem amizade por si
próprio, nunca haverá progresso possível, como bem escreveu Sêneca
cerca de 2.000 anos atrás. Permanecerá enredado em suas próprias
angústias e sendo nada menos que seu pior inimigo.

Martha Medeiros