sábado, 14 de abril de 2012
NATAL: UM OLHAR SOBRE A SAUDADE
Como se os meus olhos estivessem no alto da Igreja de Santo Antônio, do ponto de vista do galo da torre, vou esquadrinhar, num giro de 360 graus, uma paisagem física e humana de uma cidade chamada Natal.
A viagem, em busca de lembranças incrustadas no tempo e na minha emoção, começa no Potengi, rio incendiado pelo pôr-do-sol. Esse mesmo sol que lança chamas nos aratus e nos manguezais, satura de ouro a Pedra do Rosário, enriquece as quilhas dos barcos do Canto do Mangue. O rio da infância era cortado por barbatanas de botos e invadido pelos cações nas marés cheias de medo.
Os olhos atravessam a nado a distância entre o Cais Tavares de Lira e a Redinha. Do outro lado do rio, nos aguardam os alpendres generosos e suas redes alvas como dunas, o cheiro e o sabor dos cajus, o mercado vendendo uma das mais simples delícias da culinária brasileira: ginga na tapioca. Ah, Redinha, areias brancas, Rio Doce, redes de pescadores estendidas no azul da tarde, uma adolescente que passa carregando o sol nos cabelos penteados e despenteados pelos alísios. Redinha, onde casei com a mulher que me guarda como um anjo, que escreve minhas faltas na areia, como aconselhava Pitágoras, que ao longo de quase 30 anos me ama e é amada com ternura e prazer renovados.
O meu olhar atravessa o rio de volta, em frente ao Forte dos Reis Magos, estrela de pedra assentada sobre arrecifes. Os historiadores afirmam que a fortaleza foi construída pelos colonizadores portugueses. É mais lírico acreditar na lenda, citada por Luís da Câmara Cascudo, segundo a qual, ao sopro de um apito de prata de um holandês, saiu de baixo do solo uma multidão de negrinhos com carapuças vermelhas e construiu o forte num só dia de trabalho. Nesse forte, onde os portugueses, sitiados pelos potiguares, enlouqueciam de saudade, onde André de Albuquerque morreu em cruenta solidão, em noites de lua nova, fantasmas cansados de guerra brincam de fandango, bumba-meu-boi, nau-catarineta.
Antes de seguir pela beira-mar, é preciso ver as Rocas, terra de canguleiros valentes, pátria de Luís Rola, o mais audaz dos arruaceiros. Rocas dos simples e dos pobres. Rocas que nos deu um presidente da República: João Café Filho. Rocas de hipérboles, onde um beco minúsculo, sem sombra de qualquer arbusto, chama-se Rua da Floresta. Rocas dos festivais de peixes e frutos do mar, na intimidade da praça do Canto do Mangue, onde os barcos ancorados são corroídos pela nostalgia das grandes tempestades.
É preciso também visitar o bairro siamês das Rocas, a “Ribeira, palafita, / Feita de carne e de água”, como cantou o poeta Diógenes da Cunha Lima. Nas noites da Ribeira, na Rua 15 de Novembro e arredores, as mulheres de vida difícil nos esperavam para vender seus pobres amores, seus fingimentos, suas indisfarçáveis tristezas. Ribeira de todos os bares, do Tabuleiro da Baiana, que jamais fechava as suas portas. Ali, o poeta Luís Carlos Guimarães surpreendeu os bêbados “trespassando a garganta/ com chamejantes conhaques”. Ribeira da Faculdade de Direito, dos sonhos socialistas soterrados. Guardo um momento da noite de minha formatura: sentada na primeira fila do Teatro Alberto Maranhão, uma mulher cheia de beleza e mistério, descendente talvez de uma Helena filha de Zeus, casada com Menelau, raptada por Páris, seduziu-me com o olhar, incendiou-me com o olhar, acenou-me com todas as possibilidades de uma paixão. Ensaiei dizer que por ela eu seria tudo: trapezista, palhaço, equilibrista, ladrão de jóias, vendedor de seguros, garçom de zona, até mesmo advogado, se ela quisesse. Terminada a solenidade, não tive coragem sequer de apertar a sua mão.
Ah, minha Ribeira de Luís da Câmara Cascudo que, de repente, saía dos seus livros, de suas pesquisas, de seu casarão na Av. Junqueira Aires, e ia pesquisar as superstições e os costumes das prostitutas do Beco da Quarentena. Ribeira dos meus encantos, do amor quase trágico de Neusa do Wunderbar, das manhãs com ioles no rio, do barco no Cais Tavares de Lira iniciando a mais lírica das travessias.
O olhar volta ao Forte dos Reis Magos e retoma o passeio pela margem da praia onde há 401 anos o mar investe contra a estrela de pedra chantada sobre arrecifes. Ali perto, havia o profundo mistério do Poço do Dentão. Em tempo de infância, esse poço não tinha fundo e podia esconder em suas locas estrelas-do-mar e polvos, moedas e trancelins de ouro. Ai de mim, em mil e um mergulhos jamais descobri nenhum vestígio de um tesouro das mil e uma noites.
Continuando a caminhada, chega-se à Praia do Meio, águas verdes, águas claras em ondas sucessivas, águas proletárias em que a burguesia natalense jamais se banhou. Naquele tempo não se chamava Praia dos Artistas, porque seus freqüentadores eram todos coadjuvantes.
Mais adiante, rumo ao sul, o olhar se detém na Praia de Areia Preta, com suas águas serenas que se espreguiçavam e lambiam sensualmente a areia. Hoje as águas já não são calmas, mas o coqueiro solitário continua no mesmo lugar, na ponta que avança contra o azul, açoitado pelos ventos que vêm da África. Todo mês, como a amante que visita o amado prisioneiro, a lua cheia vem, aninha-se em suas palhas, ameniza a sua solidão.
Na viagem até Ponta Negra, no meio do caminho, o Farol de Mãe Luzia - branco, imponente, hierático - toma conta das dunas durante o dia e, à noite, gira seu açoite de luz contra a escuridão, para orientar os perdidos, os desnorteados, os desesperados.
E eis que surge Ponta Negra: águas mornas, mar azul-turquesa, areias que os pés palmilham com uma sensação quase orgástica, uma enseada acolhedora como um ventre ao pé do Morro do Careca. Ali, em dezembro de 1633, os holandeses desembarcaram e caminharam em êxtase, embriagados de beleza e fúria, para tomar o Forte dos Reis Magos. Ali, o adolescente aportou numa noite de desespero e chorou o amor perdido, a paixão não correspondida que o marcou como uma tatuagem.
O olhar se desloca para a Avenida 15, limite da cidade na adolescência. Avenida 15, solidão distante como o fim do mundo. Esse desterro só era amenizado pelo bar Pouso do Tetéu, lugar das primeiras incursões pela boemia, da descoberta das flores de cevada nas garrafas de cerveja, da magia de um pôr-do-sol no fundo dos copos de conhaque.
Da Avenida 15 ao Tirol. Morro do Estrondo, Morro da Solidão, Rua Apodi, descampados de areia onde o papa-figo costumava apanhar crianças para matar, extrair o fígado e vendê-lo à Viúva Machado. Tirol da primeira namorada: tinha onze anos, chamava-se Marinete, e com duas semanas de namoro teve a ousadia de permitir um beijo na boca.
Não muito longe do Tirol ficava o feudo dos Irmãos Maristas, com sua floresta de mangueiras e seus tesouros guardados por altos muros medievais. Na tradição dos sábados de Aleluia, quem se aventurava a roubar galinhas dos piedosos Maristas podia receber tiros com cargas de sal que abriam chagas terríveis. Depois dos tiros, defendido o patrimônio com o fervor de um Torquemada, com piedade cristã de um Savonarola, os irmãos iam orar pelos pecadores e entoar glórias ao Senhor.
Passando pela frente do Colégio Marista e descendo à esquerda, chega-se à Rua Camboim, território dos inimigos mortais da turma da Rua da Estrela. Mais adiante, era o riacho que desaguava no Baldo e onde mulheres lavavam roupa. Ainda longe de conhecer a poesia de Manuel Bandeira, eu tive o meu primeiro alumbramento ao ver uma lavadeira nua, de cócoras, tomando banho.
No Baldo, além do riacho por onde navegou meu alumbramento, havia os bondes que subiam gemendo a ladeira rumo à Cidade Alta. Após o cruzamento da Rua Apodi, chegava-se à Escola de Artífices, que seria depois Escola Industrial e TV Universitária, belíssima arquitetura que hoje apodrece no mais terrível e inexplicável abandono. Logo adiante, o Granada Bar, do espanhol Nemesio Morquecho Marina, que apresentou Federico García Lorca aos intelectuais da cidade. Mais adiante, o Cinema Rex, lugar dos nossos heróis da infância e da adolescência. Tom Mix, Roy Rogers, Tarzan, o Zorro, os seriados que nos deixavam aflitos durante uma semana. A serra vai cortar o mocinho ao meio? A mocinha escapará das unhas do vilão? O mocinho e a mocinha vão terminar juntos?
Da Cidade Alta, meus olhos se transportam até as Quintas, as Quintas profundas de que falou o poeta Sanderson Negreiros. Foi ali onde o galego Assis contou que havia enfrentado sete ciganos armados de punhais e enxotado todos eles a murros e pontapés. Quando lhe perguntaram o motivo da briga, ele respondeu: “Eu estava sem fazer nada. E quando estou sem fazer nada eu sou perigoso”. O galego Assis, para quem não o conhece, já domesticou pirarucus, vendeu índias e peles de onça, salvou meninos do papa-figo e se estranhou com o Coisa-Ruim no outro lado do Rio Potengi. Foi o mais imaginativo dos fabulistas de minha infância natalense.
Das Quintas, meu olhar volta para o rio e vem se aproximando. Caminha rio acima, detém-se, rende homenagem ao francês Riffault, corsário que no século 16 seduzia as cunhãs potiguares, levando-as no seu barco para a curva do rio que hoje se chama Refoles, corruptela do seu nome.
Meu olhar sai do rio à altura do Passo da Pátria e vem subindo a rua. Aquele prédio imponente, no meio da ladeira, era o Quartel de Polícia que, em novembro de 1935, caiu sob o ataque dos revoltosos que instalaram, pela primeira vez no continente, um governo comunista. O sonho e o governo revolucionário duraram apenas 82 horas. De tudo, a lembrança que a população guardou com mais carinho foi o ato do Ministério da Viação instituindo passagens de bonde de graça para todo mundo.
Por fim, o meu olhar se aproxima da arquitetura barroca da Igreja de Santo Antônio, sobe outra vez na torre onde o galo espreita a cidade desde o final do século 18. O giro está completo. As lembranças estão captadas, como a rede do pescador colhe os azuis, os verdes e os peixes nas tardes do mar natalense. A saudade vai e volta, ondas da Redinha, da Praia do Forte, da Praia do Meio, de Areia Preta, de Ponta Negra.
O meu amor por Natal ora é revolto, como as ondas que investem contra os paredões de concreto de Areia Preta; ora é manso, como uma enseada em Ponta Negra ou um braço de rio, uma gamboa do Potengi sob o crepúsculo.
Mas é amor. Amor profundo. Não cante o coração com mais verdade, como já disse um poeta apaixonado.
Nei Leandro de Castro
Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1999.
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